Tratados do Corpo Escavado. Fotografias: Chrystine Silva e Felipe Fagundes.
Apresentado no DEART-UFRN em outubro de 2011.
O projeto Tratados do Corpo Escavado engloba cinco performances criadas por mim sobre questões que dizem respeito prioritariamente a uma sedimentação da idéia de tradição como objeto preservado, para uma postura da tradição como território constantemente contaminado pela experiência presente, como bem coloca Homi Bhaba. Pensar a tradição não como forma intacta, mas como espaço em performance, se relaciona nessa pesquisa com um aspecto muito próprio para mim, já que se trata de um trabalho que recobra biograficamente elementos de minha vivência no Rio Grande do Norte, a idéia de que a memória é uma ficção em constante virtualização, ou seja, como coloca Antônio Damásio, a memória não é um dado armazenado, como muitas vezes sugere a metáfora que compara o cérebro a um computador do corpo, mas todo o corpo resguarda em suas sensações e nas paisagens sensitivas que produz a cada nova experiência interferências sobre as lembranças.
O título Tratados do Corpo Escavado brinca com os compêndios anatômicos, tratados do século XVIII e XIX, pensando no ato de abrir o corpo, conhecer seus órgão, e nesse caso desconstruí-los para pensar de uma maneira distinta o passado. Transformar não apenas uma atualização do(s) eu(s) futuro(s), mas desmembrar tantas ficções do(s) eu(s) passado(s). O jogo com a palavra escavado diz respeito à idéia de fazer um buraco em superfície, desentranhar de espaço aparentemente homogêneo, manipular objetos antigos e produzir leituras, ficções sobre suas partes e usos.
Em Paisagem Espinhal, uso um terno sobre o corpo, e uma máscara e um par de luvas feitos de algodão. Da máscara e luvas saem dezenas de agulhas. Com a face lisa do algodão nas mãos e nas laterais do rosto, vou tocando os cactos a minha frente sobre uma mesa. O toque dos espinhos vai desfazendo aos poucos o algodão até que estou com a pele em contato direto com os espinhos, fato ao que continuo em contato com os cactos. A ação trata-se de corpo instalado no espaço durante o período de uma hora.
Paisagem Espinhal remonta a figura do cacto como paisagem incorporada, um espinho que não fere o outro, corpo e cacto. Questiona um corpo nordestino contemporâneo jogando com a figura tradicional do cacto, assemelhando-o as formas do corpo do performer ao mesmo tempo em que os retira de seu usual ponto de leitura, como figura icônica de uma identidade sertaneja, para pensá-lo como espaço de resistência a paisagem.
Já Medula Abissal busca referência na corda de caranguejos, vendido usualmente em feiras livres no nordeste, onde dez caranguejos vivos são amarrados e colocados a venda. Com uma corda de caranguejo amarrada a minha face, imobilizo meus dedos na forma da patola do caranguejo, e coloco em cada par de dedos um cabo de som, ligado a pedaleira e caixa amplificadora. Construo assim uma relação de movimento, interferência e batalha com os caranguejos, tocando-os com minhas patas, os sons gerados no ambiente e modificados pelo aparato técnico são resultado dessa interação.
Medula Abissal remonta minhas experiências de infância catando caranguejos na cidade onde nasci, joga com este segundo elemento icônico, desta vez do litoral nordestino, acoplando-o a meu corpo como uma prótese, um espaço corpóreo de transição, entre o doce e o salgado, entre o mangue e o asfalto, entre andar e deslocar-se. Discute como esse corpo transitório do caranguejo se configura novamente como espaço de resistência, um corpo adaptado a um território movediço, comparando-o a essas novas perspectivas de compreensão do corpo e cultura nordestina na contemporaneidade, onde a tradição regional não atua como delimitação de segregação, mas zona de performance, rede e interface de contato entre o externo e o interno. Lida para isso com o uso de tecnologias de som que espacializam essa relação entre performer e caranguejo, gerando um campo sônico compartilhado na sua execução entre as patas do performer e dos caranguejos.
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