segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Tratados do Corpo Escavado



Tratados do Corpo Escavado. Fotografias: Chrystine Silva e Felipe Fagundes.
Apresentado no DEART-UFRN em outubro de 2011.

O projeto Tratados do Corpo Escavado engloba cinco performances criadas por mim sobre questões que dizem respeito prioritariamente a uma sedimentação da idéia de tradição como objeto preservado, para uma postura da tradição como território constantemente contaminado pela experiência presente, como bem coloca Homi Bhaba. Pensar a tradição não como forma intacta, mas como espaço em performance, se relaciona nessa pesquisa com um aspecto muito próprio para mim, já que se trata de um trabalho que recobra biograficamente elementos de minha vivência no Rio Grande do Norte, a idéia de que a memória é uma ficção em constante virtualização, ou seja, como coloca Antônio Damásio, a memória não é um dado armazenado, como muitas vezes sugere a metáfora que compara o cérebro a um computador do corpo, mas todo o corpo resguarda em suas sensações e nas paisagens sensitivas que produz a cada nova experiência interferências sobre as lembranças.
O título Tratados do Corpo Escavado brinca com os compêndios anatômicos, tratados do século XVIII e XIX, pensando no ato de abrir o corpo, conhecer seus órgão, e nesse caso desconstruí-los para pensar de uma maneira distinta o passado. Transformar não apenas uma atualização do(s) eu(s) futuro(s), mas desmembrar tantas ficções do(s) eu(s) passado(s). O jogo com a palavra escavado diz respeito à idéia de fazer um buraco em superfície, desentranhar de espaço aparentemente homogêneo, manipular objetos antigos e produzir leituras, ficções sobre suas partes e usos.

Alguns Aforismos Sobre Performance

1. O que há na performance para que todos a usem e ninguém a queira? O que há na América Latina e no nordeste brasileiro para que todos os usem e ninguém os queira? A não ser nós que na prisão do desejo e abuso alheio, reinventamos o corpo e seus territórios usando sua força ácida e sua ação atômica para fundir as fronteiras, aproximar toques e derramar sobre o mar dos olhos colonizados o grosso petróleo dos corpos solvidos no esforço político de pensar os próprios órgãos, o próprio desejo.

2. Estar em performance é um esforço para ser sincero ao próprio corpo sendo contraditório. Cruzar a fronteira, retirar a fronteira dos cruzamentos. Esforço de ser e estar e been together.

3. Se existem vários corpos no teatro e na dança, a performance seria a mina sob a terra que despedaça e funde esses corpos na explosão.

4. A performance se instaura como um movimento complexo de contaminação que se adapta ao ambiente e seus indivíduos, acoplando-se aos corpos como próteses distintas, faces de interação entre corpos, e entre os corpos e o espaço. A performance é sempre um esforço de amputar-se e acoplar-se.

5.A performance como um esforço político de não conter-se em si. De pensar como somos somos nós. De sermos o movimento entre nós.

(Paisagem - Imagem - Linguagem Sonora - Público - Performer - Situação)

Como havíamos deixado em aberto anteriormente, voltamos agora para discutir os elementos conceituais de composição cenográfica do experimento Cleansed-ES3, desenvolvido pelo Coletivo ES3. Outros pontos ainda serão retomados, mas vamos por partes, as promessas de qualquer forma permanecem e os elementos sobre os quais não discutimos anteriormente e que deixam ainda muito espaço para discussão serão retomados. Vamos lá.
Observemos então os espaços conceituais abordados pelo trabalho, a começar pela idéia de paisagem. Ao buscar a significação da palavra paisagem podemos encontrar nos dicionários da língua portuguesa uma aproximação muito marcante com a idéia de imagem, da paisagem como entidade visual, mas a quê mais de fato nos referimos quando falamos da observação de uma paisagem?
Recorramos aqui a uma abordagem mais contemporânea deste conceito, e então pensemos para tanto no esboço de uma paisagem a nossa frente, seus elementos em toda sua complexidade e simultaneidade. A primeira instância é talvez a imagem da paisagem, seus elementos visualizados, sua plasticidade, contudo pensemos na idéia de imagem não apenas sob o predomínio da visão. Como sugere Christine Greiner (2005), a partir das leituras de Antônio Damásio, ao comentar os componentes neurocientíficos da relação entre corpo e percepção da imagem:
“Para Damásio o termo ‘imagem’ quer dizer um ‘padrão mental’ com uma estrutura construída através de sinais provenientes de cada uma das modalidades sensoriais (visual, auditiva, olfativa, gustatória e somato sensitiva ou somato-sensória)” (GREINER, 2005: 72).

Observando esta noção de fios de encontro entre corpo e paisagem através dos sentidos, e não sob o princípio de prioridade de um sentido, vemos então que a imagem, a paisagem com a qual nos defrontamos ao testemunharmos a cena projetada pelo grupo ES3 investiga, com efeito, esta perspectiva de construção. Parece haver grande consciência deste princípio em sua proposta cenográfica, se pensamos que usualmente a cenografia é tomada como componente visual da narrativa na cena, e que se esquece da perspectiva múltipla da imagem da paisagem.

Geräuschkulisse (O Ruído de Fundo)

Retornamos após a apresentação de Cleansed em dezembro de 2010 para discutirmos as questões de trabalho no ano de 2011. O grupo concordou na continuidade do trabalho, realizando performances, instalações artísticas, paisagens sonoras e vídeo-artes dos quais havíamos rascunhado idéias durante o processo criativo no ano de 2010, ou mesmo pensado após a realização da última apresentação. Sobre esta dinâmica de trabalho discutiremos em outros posts.
A convite do Centro Acadêmico Edson Claro do curso de Licenciatura em Teatro da UFRN, colocamos em prática uma dessas idéias no final do mês de fevereiro de 2011. Organizamos a idéia de uma paisagem sonora envolvendo a perspectiva de enfoque no público, inserindo-o como sujeito e objeto instalado na cena, e provocando através da troca de suas roupas uma modificação de sua performance, assumindo sem outros incentivos além da troca de “figurino” uma postura modificada na paisagem.
Circunscrevemos o “público” a um espaço separado daqueles que optaram por não entrar ou ali estavam desde o início apenas observando. Este espaço buscava através da projeção videográfica e fundamentalmente pelos arranjos sonoros produzidos por três pontos de som, em distintas posições, alturas e distâncias, provocar o estímulo à produção da imagem de um vagão de prisioneiros nazista em movimento, e estimular com estes impulsos, somados a presença e ações de dois performers no vagão, a produção de comportamentos alterados no público.
As questões que ensejáramos trabalhar foram bem sucedidas em todos os seus aspectos, a continuidade de nossa pesquisa de produção do espaço através do som, a alteração de comportamento e performance do “público” (performers) e do público (performer espectador) interagindo fortemente com a cena, a questão da troca de “figurino” como traço de composição de modificação da performance corporal, e, por fim, as questões de poder entre dominador e vítima.

Cleansed

Após oito meses de processo e longas discussões, o grupo chegou ao momento de confrontar-se com o texto Cleansed de Sarah Kane, desafiando sua poética na cena. Para composição do espetáculo Cleansed, terceira apresentação pública do grupo de trabalho envolvido neste projeto, procuramos enfatizar, eu e o grupo, as relações de pesquisa estabelecidas já na apresentação da performance ES3, seriam estas: o trabalho de mestiçagem entre cenografia e instalação, os aspectos sonoros como perspectivas espaciais, a composição de diversas linguagens artísticas na cena, a relação interativa com o público, e, por fim, a atuação como performance ligada a cada corpo e não como conceito homogêneo sugestionado pela obra dramatúrgica.
Não cabe neste post discorrer sobre estes aspectos que procuraremos abordar em outro momento, para não tornar mais amplo meus textos já conhecidos por sua incapacidade de sintetizar idéias. Colocarei apenas que buscávamos para a produção deste espetáculo um nível de interação diferente do nível usual encontrado na performance ES3, construindo-a através de formulações espaciais e procurando manter a ênfase da igual importância de cada campo da cena, iluminação, cenografia, etc., para a comunicação que ensejávamos estabelecer.
Dessa feita, através de práticas individuais e coletivas o grupo aprofundou-se nas estratégias que pretendia desenvolver em cena, ou como gosto de chamar, o grupo produziu nessa fase gatilhos para lançar em direção a prática as idéias e desejos que reunira até então. Este espetáculo envolveria em primeiro lugar uma ampliação do espaço de cena, o que exigiu uma maior capacidade de pré-produção e produção, assim como uma maior diversidade de materiais. Num segundo momento as brechas de caráter prático, como a perda de colegas no percurso do processo, precisariam ser supridas, mesmo que não de forma ideal, momento em que passo a compor o elenco de performers da encenação.
Contudo, a persistência e dedicação do grupo apresentaram-se como elementos fundamentais nesse momento, disponibilizando horários extras e realizando uma produção coletiva de escala nada razoável. Se a performance é uma arte de guerrilha, lembro-me agora da referência de Guevara a obra Guerra e Paz em seus diários, no qual um exército além de seu número tem como elemento de soma o desejo e ímpeto de cada soldado por aquilo que defende para identificar seu real tamanho.
Sem querer soar militarista, retiro dessa afirmação a presença e força do desejo de um grupo de sujeitos dedicados a um objeto comum, conferindo-lhe outra dimensão de sentido e presença. Em dezembro do ano de 2010 realizamos com recursos próprios e apoio de algumas entidades privadas, na forma de descontos nos materiais adquiridos para a encenação, as apresentações gestadas pelo grupo há cinco meses, sendo uma destas parte integrante do Circuito Cultural Baixo de Natal.
Para encerrar a descrição deste terceiro momento em que o grupo de trabalho do espetáculo Cleansed foi a público, acredito que caiba apenas acrescentar a satisfação no cumprimento de nosso esforço, que encontrou naquilo que realizava o prazer que pretendia, tendo cenicamente chegado onde desejava.



Fotografia: Rodrigo Bico

Performance ES3





O segundo momento de criação, o primeiro de reunião do grupo de trabalho para a conjunção de suas experiências após três meses de oficinas, marcou o movimento de geração de uma performance coletiva. Procurei durante o período de oficinas pensar uma forma de trabalhar o texto dramatúrgico não a partir de temáticas, ou da construção dos personagens por vias secundárias para a introdução do texto, mas buscando perspectivas de concepção política da poética que constituía a obra Cleansed de Sarah Kane.
Assinalo aqui política como espaço que condiz aos princípios relacionais que se desenvolvem no contato entre sujeitos, entre sujeito e meio, e na própria configuração da subjetividade em si. Para além dos jargões complicados, a operação que procurei conduzir nas oficinas foi um espaço de experiência que buscava pensar o corpo em zonas sensíveis não familiares, trabalhando como metodologia com estruturas de alteração dos sentidos através do movimento, da tensão corporal, do acoplamento de objetos, dentre outros elementos.
Essa fase além de propiciar uma diversidade de sentidos e leituras a cada momento realizado, gerando um processo performativo de investigação corporal sugerido pela leitura do texto, serviu também o grupo de maneira mais fundamental, na constituição de um primeiro contato entre seus membros e na definição da relação entre todos.
A oportunidade de criação da performance era também um exercício para o grupo, uma espécie de saída para pesquisa de campo dos elementos que tínhamos até então encontrado e desenvolvido em sala de prática. Nessa fase o grupo se reuniu a mesa e discutiu, e discutiu, e discutiu, ad absurdum. Histórias começaram a surgir na discussão, sobre hospitais, experiências pessoais ou fatos ocorridos com sujeitos próximos, quase todas com um viés em comum que posteriormente identificamos: a exposição do doente no momento de sua morte. Nesse caso essa sentença expressa não apenas uma linha conceitual de criação de performance, mas também a exposição física nos corredores de hospital dos doentes terminais, a vida desnudada.
Criamos assim a estrutura da performance apresentada em junho de 2010, que em outros posts discutirei com mais profundidade, mas aqui farei parecer um passo sem esforço me detendo apenas a descrever para finalizar este texto: cinco doentes em cena, quatro deitados em suas camas de grama e barro, com uma placa de gesso, lápide, fralda, prontuário, repousada sobre seus ventres, três fios pendem das varas de luz em direção a cada um, um microfone, uma lâmpada, uma bolsa de soro. No centro do espaço acompanhamos o quinto, de pé, enfaixado e engessado, sobre um campo de telhas de barro, movendo-se com um impacto sonoro da microfonia dos demais, duas televisões mostram olhos emclose-up num vídeo, no qual em suas legendas visualizamos o texto. Um sexto performer opera estímulos sonoros, mediando e compondo o enlace e desenlace destas relações. Na sala de espera (fora e dentro do espaço), os visitantes aguardam um a um as suas entradas.




Sapos

A instalação “Sapos” foi criada a partir do estudo da primeira cena da peça Cleansed de Sarah Kane, refletindo prioritariamente sobre um momento de irrupção da vida e suas relações com espaço ao qual se restringe. Uma ponte entre vida e espaço, uma experiência limite onde o corpo se dissolve, são estas frases tópicas para o pensamento que desenvolvi nesta instalação.
Parece ser esse um dos focos da peça Cleansed, a experiência limite da vida em determinados cenários, como o campo de concentração e o hospital, produtores de corpos desgastados pela ação das condições do espaço onde se vive. Um corpo que explode no mercado público, um corpo de um viciado morto de overdose, um corpo esperando a morte no corredor do hospital, metáforas dessa vida que deixa de ser “a vida” e se torna “uma vida”, ponto sobre o qual passei a refletir sobre uma estrutura mais primária ligada ao percurso de ida e vinda para minha casa.
Explico-me: sempre neste percurso encontrava corpos de sapos estourados pelas crianças que brincavam, pelos carros e motocicletas que passavam, pelo sol ao meio-dia. Próximo a minha casa existe uma lagoa de captação da água da chuva, que naturalmente no período do outono e inverno, épocas de maior índice de chuvas, enche e se torna nesse intervalo de tempo um imenso criadouro de sapos que surgem em grande número com o acúmulo de água.
Bastava a estes sapos que saíssem do espaço da lagoa e abruptamente por alguma das ações citadas acima morriam, e em épocas de fim de inverno seus cadáveres secos pelo sol ocupam grande parte da rua. Ao vê-los dia após dia passei a pensar neste percurso, neste holocausto que ignorava. Holocausto num sentido quase bíblico, como coloca Jó “um holocausto que se oferece em sacrifício”, um sacrifício cíclico de uma realidade estranhamente natural: a lagoa, as chuvas, os sapos, o seu crescimento, sua morte, e então novos sapos resultantes de sua reprodução adentrando um mesmo ciclo.
Olhar aqueles corpos secos dos quais desviava cotidianamente enquanto caminhava para juntar-me ao grupo e pensar Cleansed de Sarah Kane, me fez repentinamente refletir sobre esta instância de exposição e fragilidade da experiência da vida considerando uma violência natural do meio em que se insere. Violência no sentido em que discorreu Merleau-Ponty sobre esta, como condição sensível de toda existência em relação a alteridade, de forma que nos restaria nesse raciocínio pensar que não existe a paz, apenas formas alternadas de violência que são o próprio movimento estranhamente natural da vida.
Dessa maneira, realizei no primeiro BodeArt, em maio de 2010 no espaço do TECESol, com apoio das discussões e observações do grupo de trabalho, a composição de uma instalação que buscava tratar destes pontos aqui discorridos. No início de cada manhã, durante dias, recolhi uma a uma diversas carcaças secas de sapos jovens e adultos, de pele enegrecida pelo sol, ou esbranquiçada pela exposição dos ossos. Propus uma instalação em performance usando a diferença de densidade de fluidos em copos e vasos, para fazer que com o passar do tempo se movimentassem lentamente em seu interior os corpos secos dos sapos e gotas de tinta colocadas sob estes, de forma que enquanto se moviam em direção ao fundo do copo ou vaso coloriam com duas tonalidades distintas os dois espaços, caminho de vida e morte, experiência limite que os divide.